No primeiro artigo desta série, falamos sobre por que utilizar a teoria dos tipos de personalidade pode ser útil na criação de personagens fictícios e até mesmo no próprio processo de escrita. Mas, na prática, como isso funciona? Vamos analisar com mais detalhe como incorporar a teoria dos tipos de personalidade no desenvolvimento dos personagens pode torná-los mais críveis e realistas, incluindo alguns exemplos.
Consistência
Ao considerar o tipo de personalidade de um personagem, o autor consegue elaborar comportamentos com uma razoável consistência, evitando assim confundir ou irritar leitores com ações aparentemente erráticas ou incongruentes. Vamos começar com um exemplo.
Exemplo: A sargento Denise Washington (uma Protagonista Turbulenta, ENFJ-T) era sempre a primeira a entrar durante uma batida policial. Incansável desde o primeiro dia na força, queria provar seu valor em meio ao mar de masculinidade azul que às vezes sentia que poderia engoli-la. Ela executava seu trabalho com orgulho, avançando decidida para abrir caminho na mentalidade antiquada do departamento, com a mesma determinação com que arrombaria uma porta em uma operação.
Ao recorrer ao modelo teórico para uma Protagonista Turbulenta, entendemos melhor como essa personagem provavelmente agiria em qualquer situação. Ela é ousada, visionária, idealista e inquieta. Conhecer suas tendências e comportamentos guiados pelos traços de personalidade ajuda o autor a decidir como ela reagiria a um conflito com um colega, uma briga amorosa, uma morte na família ou mesmo algo tão simples quanto uma criança derrubando um abajur. Isso garante consistência ao personagem, independentemente da parte da história em que ele aparece.
Às vezes, um personagem precisa fazer algo que parece improvável para seu tipo de personalidade. Nesses casos, o autor deve ter certeza de explicar ou transmitir um motivo para tal atitude. (Voltaremos a esse tema de maneira mais aprofundada na terceira parte.)
Motivação
Estar atento ao comportamento guiado por traços de personalidade pode ajudar autores a dar aos personagens razões bem pensadas para agirem como agem, além de combinar bem com o passado e detalhes pessoais do personagem.
Exemplo: Arman (um Lógico Assertivo, INTP-A) vagava pelo califado, incapaz de encontrar alegria no ofício do pai ou satisfação ao lado da mãe – e pouco se importava com a desaprovação deles. O prazer da descoberta o atraía cada vez mais, assim como o desafio de libertar as melhores joias da nobreza do reino. Arman não via crime em roubar dos ricos, nem qualquer motivo para não enriquecer no processo, e estava sempre alegremente envolvido em novos e engenhosos esquemas.
Por que Arman é tão despreocupado com a lei e com o desejo dos pais? Será que ele é apenas ganancioso? Talvez não. Como um tipo Intuitivo e Analítico, ele racionaliza tudo o que limita sua inspiração e prefere ser independente justamente por ser, em certa medida, isolado das emoções alheias. Sua Identidade Assertiva faz com que seja autoconfiante, mas pouco ambicioso quanto à estrutura da própria vida – ele faz o que quer, quando quer. O traço de personalidade Desbravador impulsiona sua curiosidade e o faz sentir-se à vontade para desafiar regras. Ele é um trapaceiro amável, mas irredutível em seu egocentrismo.
Interação Entre Personagens
Compreender como diferentes tipos de personalidade interagem ajuda autores a descobrir formas de criar interações positivas ou negativas entre personagens, inspirando cenas e tramas tão interessantes quanto coloridas.
Exemplo: Luca (um Mediador Turbulento, INFP-T) ficava cada vez mais apreensivo com seu companheiro de ocasião. Já bastava o teleférico inexplicavelmente parado sobre rochas afiadas que despontavam na neve do fim da temporada, mas o americano ao seu lado parecia tão descuidado quanto desleixado. “Cara, acho que a gente pode simplesmente pular daqui”, disse o americano (um Empreendedor Assertivo, ESTP-A), inclinando-se e fazendo o banco balançar. “Por favor, pare de se mexer. Vamos esperar, por favor”, pediu Luca, num inglês sofrido com sotaque suíço, desejando nunca ter saído do estúdio em Berna. O americano apenas riu e continuou balançando as pernas, oscilando ainda mais o assento. “Relaxa, brother, relaxa...”
Saber que Luca é um tipo sensível e reservado ajuda o autor a decidir como ele reagiria frente a uma personalidade muito mais ousada e despreocupada, como a de um Empreendedor Assertivo. Luca se apavora com as possibilidades de perigo, mas se mantém educado, enquanto o americano confia em sua própria avaliação do momento e pouco se importa com as preocupações alheias sobre possíveis consequências. Com uma clara ideia do contraste dos personagens, conforme descrito na teoria dos tipos, a interação praticamente se escreve sozinha.
Reações Internas
Decidir como os personagens se sentem diante dos eventos fica muito mais fácil ao seguir o roteiro comportamental da teoria da personalidade, ajudando o autor a detalhar reações e pensamentos internos. Isso pode ajudar bastante na exposição e no desenvolvimento das narrativas internas. Por exemplo, vamos imaginar uma história sobre um viúvo de meia-idade cansado da solidão e tentando superar o isolamento.
Exemplo: Christopher (um Arquiteto Turbulento, INTJ-T) não sabia como lidar com a atendente do café lhe flertando. Seria profissionalismo ou ela realmente o achava atraente? Será que ele estava imaginando o interesse dela? Já havia testado dando gorjetas generosas e também não dando nenhuma, mas ela sempre lhe oferecia atenção especial, reacendendo esperanças juvenis adormecidas há muito. A ideia de namorar uma mulher mais jovem o deixava hesitante, e ele se perguntava se seria capaz de se permitir viver esse desejo. Claro que, apesar de tantas inquietações, isso não o tornava socialmente ousado, e o encontro daquela manhã foi tão rotineiro quanto seu pedido de café.
Compreender os processos internos orientados por traços de personalidade ajuda o autor a escolher o tipo de personalidade do personagem e, assim, descrever essas dinâmicas. Um Arquiteto Turbulento se encaixa perfeitamente neste viúvo, pois, apesar de ter uma imaginação vívida e desejos inspirados, esse tipo frequentemente reluta em agir, processando seus sentimentos sob um filtro analítico em vez de simplesmente expressá-los — uma tendência que torna o romance um tema especialmente tenso e interessante.
Autonomia
Escritores de ficção, em certa medida, são limitados por seu próprio tipo de personalidade, projetando-se nos personagens e, às vezes, misturando involuntariamente traços pessoais aos protagonistas. Pensar como alguém radicalmente diferente é um desafio, mas compreender outros tipos de personalidade ajuda os autores a lidar melhor com essa tarefa. Também torna possível diferenciar personagens para que se destaquem uns dos outros, mesmo sendo todos criados e escritos pela mesma pessoa.
Exemplo: O autor (um Ativista Turbulento, ENFP-T) está escrevendo uma história sombria sobre um casal suburbano lidando com a morte do único filho, um adolescente que morreu em um acidente de carro enquanto dirigia embriagado. O autor decide que o pai é um Prático Turbulento (ISTJ-T) e, então, pesquisa como esse tipo de personalidade lidaria com tal trauma. Enquanto o próprio autor, em um momento de luto, buscaria apoio entre pessoas próximas, percebe que o pai, por sua vez, provavelmente sufoca a própria dor e decide escrever sobre ele mergulhando em um poço escuro de alcoolismo para fugir dos próprios sentimentos.
Pode ser difícil escrever de forma crível sobre personagens que parecem tão diferentes de nós, mas a teoria da personalidade é como ter um guia turístico pelos caminhos do coração e da mente de outra pessoa.
Inspiração Flexível
Quando personagens são definidos usando tipos de personalidade, as mentes férteis dos autores podem visualizar facilmente como eles poderiam viver, inspirando grandes ideias para tramas. O conflito ou a harmonia entre estilos, métodos e até mesmo objetivos de longo prazo dos personagens torna-se mais evidente quando se baseia em tipos de personalidade sólidos. As prováveis interações entre diferentes tipos são apenas um ponto de partida e, ainda assim, os autores têm total liberdade para decidir as ações de cada personagem.
Exemplo: Personagens com tipos muito diferentes podem criar um vínculo justamente porque seus traços opostos se equilibram, formando uma ótima equipe. Por outro lado, esses mesmos tipos podem detestar-se simplesmente por não terem maturidade suficiente para enxergar o valor da cooperação equilibrada em vez de insistirem em fazer tudo do próprio jeito. Ao mesmo tempo, personagens com personalidades extremamente semelhantes podem viver em harmonia como almas afins ou, apesar da similaridade, entrar em grandes conflitos de cultura, crenças ou motivação pessoal.
Independentemente de as personalidades dos personagens os unirem ou colocá-los em lados opostos, os autores conseguem mais profundidade quando os motivos são moldados pela teoria da personalidade. Naturalmente, personagens profundos e consistentes não significam necessariamente personagens previsíveis – e esse será o tema do nosso próximo artigo.
Leitura complementar
Confira outros textos da nossa série sobre Escrita de Ficção:
Teoria da Personalidade na Escrita de Ficção I: Tornando os Personagens Pessoais
Teoria da Personalidade na Escrita de Ficção III: Limites e Quebrando as Regras
Teoria da Personalidade na Escrita de Ficção IV: As Profundezas da Maldade – “Vilões”
Teoria da Personalidade na Escrita de Ficção VI: Ampliando o Alcance